Aquando da morte de seu fundador, João Allen, a família decide fazer uma avaliação e colocar o Museu à venda, a Câmara do Porto pressionada por um grande numero de cidadãos respeitáveis, adquire o Museu, pela quantia de 19.000$00 reis (19 contos de reis), em 1850, a aquisição foi feita em letras vencíveis em prazos alargados, sendo presidente da municipalidade o falecido visconde d’Alpendurada, e governador civil o ex.mo conselheiro Lopes de Vasconcelos. (J. S. Ribeiro, 1879, p. 194)
Nova Direção
A Direção do Museu Portuense ficou a cargo de seu filho, Eduardo Augusto Allen, que herda de seu pai o gosto pela arte, prosseguindo o crescimento e enriquecimento do museu. Passando a aquisição de peças, a ser feita por doações e compras através de cônsules espalhados pelo mundo.
Eduardo Allen assume igualmente a direção da firma E. A. Allen & Companhia e a responsabilidade de liquidar as dívidas de seu pai.
O museu ficou interinamente na casa em que estava, a qual, tendo sido construida em '1838, já era pequena 'para accommodar a bem ordenada collocação dos objectos de arte e antiguidades. Ainda hoje, e não obstante pertencer o museu á camara, está elle collocado na mesma casa; sendo muito para lamentar que a illustre corporação municipal não haja podido consagrar para um tão importante destino um edifício assaz vasto, e convenientemente repartido.
(J. S. Ribeiro, 1879, p. 179)
O expediente de sollicitar dos consules de Portugal em diversos paizes, e das auctoridades portuguezas no ultramar, a remessa de objectos interessantes, como sendo este o meio de ir enriquecendo pouco a pouco o museu. O Museu Britannico fez ao do Porto a offerta de cento e tantos volumes de magnificos catalogos. O ex-consul de Porto-Alegre, o sr. Amaral Ribeiro, e o barão de Castello de Paiva, enviaram ao museu interessantes collecções: o primeiro do Rio Grande do Sul, e o segundo, da Ilha da Madeira e das Canarias.
(J. S. Ribeiro, 1879, p. 180)
Este ilustre museu, será integrado mais tarde no atual Museu Nacional Soares dos Reis, juntamente com o seu espólio. Um museu tão elogiado, por tantas figuras que o visitaram, tais como: Ferdinand Denis, que escreve um artigo sobre o museu em Le Portugal (coleção de l’Univers), pag. 381; o conde Raczinsky, em Lettres sur les Arts en Portugal, pag. 384; o guia do viajante Luso-Brasileiro de Dr.. Lemos, pag. 38; entre outros, não existindo registos de imagem detalhados de todo o seu esplendor é merecedor de uma descrição sucinta, a qual se deixa aqui nas palavras de Urcullu[wfn]D. José de Urcullu, descreve e comenta de igual forma o Museu Allen, no Tratado Elementar de Geografia[/wfn], artigo de jornal de 1838, a qual nos permite no imaginário percorrer as salas deste Museu.
O edificio que serve de Museu, é situado no fundo do jardim da casa em que mora o Sr. Allen: consta de tres salões iguaes de 22 palmos e meio de altura, 47 de comprimento, e 26 e meio de largura. A luz entra em todos elles por claraboias bem dispostos no tecto.
A primeira sala contém uma riquíssima collecção de conchas, entre as quaes algumas ha de muitissima estimação e que outros gabinetes publicos não possuem. Todos ellas estão colocadas por famílias, segundo o systema de Linneo com preferência ao de Lamarque. Vê-se alli quão caprichosa tem sido a Natureza tanto na figura como nas cores, que tem dado a certas conchas. Que assombrosa variedade ! Que delicadeza nas formas ! Que profusão, que viveza nos matizes ! Alem das conchas há também outras curiosas produções marítimas dignas da atenção d’um naturalista.
Esta mesma sala contém 126 quadros de diversos authores : entre os quaes merecem ser citados as “Nupcias de Thetis e Peleo”, quadro mythologico, onde se vê a invejosa Discordia lançando a maçãa com o letreiro para a mais formosa, origem da guerra de Troia. Esta pintura, que se supõem ser de Rubens, pertenceu ao Lord Audley. Por baixo d’este painel, á mão direita, ha uma pintura de Tenniers de muita estimação como todas as d’este alegre pintor flamengo. Uma cabeça d’um rapaz, do pintor hespanhol Murillo; um S. Sebastião de Guido, uma lindissima paisagem de Rembrand, um S. Francisco penitente por Carraccio, um Floreiro por Picart, um Jesus no Horto, por Pedro de Cortona, dous quadros a pastel por Pilment, e um quadro obra de Vieira Portuense são as pinturas que mais se distinguem n’esta sala.
Os visitantes vêem na segunda sala uma collecção de mineraes, de mármores, de lavas do Vesubio, de pedras preciosas em bruto e lapidadas, e outros objectos raros da arte e da natureza, cuja a descrição nos occuparia muito espaço. Faremos com tudo menção de três cousas; a primeira o relogio que usou o D. Ignez de Castro; a segunda um bocado de renda natural, isto é, a casca de arvore convertida em renda finíssima, e da qual se servem alguns Indios da America para os seus adornos, como as Senhoras dos nossos paizes das rendas artificiaes. A terceira cousa é um caroço de cereja de tamanho natural, que contém quinze dúzias de colheres de prata bem trabalhadas. Lembra nos a este respeito o titulo d’um capitulo das obras do P. Hespanhol Feijóo, o Maximo no Minimo, dedicado á descripção de obejectos d’esta natureza. Se fazemos menção particular d’este caroço não é tanto como objecto raro, porque em Inglaterra tem-se vendido bastantes iguaes, coo para fazer vêr até que ponto chega a industria e a paciencia do homem.
É inquestionável a riqueza do espólio, as referências de D. Urcullu remete-nos para salas repletas de tesouros e da visão de um Homem, que deixa um legado a todos os Portugueses, tanto histórico como cultural, não sendo visível num tempo próximo seja passado ou futuro outro igual. A merecida homenagem que o Museu Nacional dos Reis concebe a João Allen, traz a público o conhecimento da figura adormecida de uma Pessoa ilustre à cidade, fomentando curiosidades, abrindo caminho a mais estudos. O espólio deste legado é imenso, provavelmente a fabulosa pinoteca será a que terá mais impacto em toda a coleção e que suscitará mais ‘dúvidas’.
Um Christo crucificado, um S. João, e um quadro historico pintados por Vieira o Portuense; a Morte de Abel, e o Sacrificio de Isaac por Carabagio: dous retratos de Vandyck , vários esboços de Cades, um ataque entre Turcos e Venezianos, um quadro de Tenniers, um Christo na Cruz por Van Tulden, discípulo de Rubens, duas paisagens a pastel por Pilment, e uma Caravana por Salvador Rosa, são os painéis que chamão mais a attenção entre os 170 que adornão esta salla.
A ultima tem dous quadros magníficos de perspectiva por Bombelli; um d’elles representa o choro dos Frades Capuchos, e o outro uma Escola de Meninas, comprados pelo Sr. Allen em Roma. A luz está com tal arte distribuida, que os objectos formão Vulto, ou por melhor dizer relevo, em termos que a illusão cresce quanto mais se examinão. Christo no acto de ser depositado no Sepulcro, o Sonho de S. Jeronimo, duas Cabeças, uma d’umVelho mathematico e outra d’uma Velha a rezar as contas, dous esbocetos de Dominichino, duas paisagens de Vieira Lusitano, merecem ser citados entre os 140 paineis que contém esta salla.
Allem d’estas pinturas vê-se alli uma mesa redonda de sete palmos de diâmetro, embatida de differentes mármores romanos dispostos em círculos concêntricos, todos eles numerados para se poder consultar no catalogo a classe a que pertencem. Sobre diversas mezas estão collocados objectos dignos de serem notados pela sua raridade ou riqueza. Não passaremos em silencio duas obras primorosas d’um esculptor Portuense, João José Braga, que morreu da Cholera-Morbus durante o cerco desta cidade. Este habilíssimo esculptor era eminente em representar Meninos em differentes attitudes feitos de barro: os dous que se vêem no Museu do Sr. Allen estão, um d’elles a dormir, e o outro no momento de acordar. Que carnes tão mórbidas! que expressão! que graça! que naturalidade! Se este artista tivesse sido Francez ou Inglez, em poucos anos teria adquirido riquezas, e a fama dos seus talentos teria resoado em todos os ângulos do mundo. Era Portuguez, e apenas se sabe onde está enterrado …!
Sobre uma das mezas está n’um caixilho de ebano um S. Francisco Xavier, o Apostolo das Indias, obra primorosa de marfim; e na meza em fronte, um Calix de prata dourada com a sua patena, peças antigas, de gosto gotico, ricamente trabalhadas. Adorna um dos angulos da mesma salla um lindo grupo de mármore que representa Venus e Cupido.
A diversidade e o cuidado no tratamento do espólio revelam, uma previsão de futuro com objetivos bem delineados, distantes de um mero colecionador de artigos ou de peças de arte. Opinião recolhida não somente por esta descrição, mas pela biografia e testemunhos tidos de quem visitou o Museu, o primeiro de Portugal.
Daremos fim a este artigo com uma observação que julgamos essencial. O proprietário do Museu tem tomado, como é justo, todas as precauções para que elle não seja roubado sem logo ser descoberto o autor do roubo, e apanhado in franganti delicto.
[…]
Na meza que está no meio, onde n’um livro elegantemente encadernado escrevem seu nomes os Visitantes, está collocado um obelisco de mármore preto, que, quando o vimos pela primeira vez, julgamos era o modelo do obelisco de Luxor, ou uma das agulhas de Cleopatra em Alexandria. Soubemos depois que representa o obelisco que descobriu na ilha de Philae ou Filea, situada no Alto-Egypto, o viajante Belzoni.
Dentro poucos dias esta salla há de ter como as outras duas á roda d’ella armários envidraçados para guardar n’elles antiguidades, fossis, um rico medalheiro e outras muitas cousas curiosas, que por falta de local apropriado ainda não são patentes aos Visitantes. Estes não podem deixar de admirar o gosto, a elegância, o asseio, e a ordem que reina no Museu. Os Estrangeiros, e os Nacionaes que o tem visto convem unanimente em que não formavão idéa de que na cidade do Porto houvesse uma cousa que mesmo nas capitães das nações mais civilizadas seria digna de admirar-se.
(PORTUENSE, 1838, p. 152)
Dentro desta tão clara exclusividade de coleções, é apropriado falar-se de um colecionismo eclético que, acompanha a ciência museológica, onde assumem especial destaque a pintura, arqueologia, a lapidaria, a numismática e as artes decorativas.
O Museu Allen expõe a visão de um Homem, que transcende o colecionismo privado, onde o termo correto utilizado por colecionadores deste século seria Gabinete, já que a designação de ‘Museu’ se deve reservar para iniciativas que envolvam uma dimensão – e uma ambição – que superem a realidade mais chã do vulgar coleccionismo privado de amadores e eruditos (João Carlos Pires Brigola, 2003, p. 401). Certo que seja um museu eclético, pois provém do gosto pelo colecionismo de seu fundador, diversificado nas amplas peças que adquiriu, que juntou e disponibilizou à sociedade, obtendo o seu reconhecimento, agradecimento e um estatuto, que elevou a sua coleção a património nacional.
Um anúncio surpreendente: menos de 15 dias depois da morte de João Allen, José Allen publicita a constituição duma firma envolvendo todas as figuras que estiveram ligadas à ruína de seu tio João Allen!
Em 6 de junho de 1848, José Allen, tendo obtido de Carlos Luís Gubian a cessão dos créditos deste sobre a totalidade dos bens de seu tio João Allen (persiste o mistério da origem do dinheiro que lhe permitiu tal compra), procura pretextos para se apossar de todos os bens. Arranja-os rapidamente e, em 6 de junho, põe uma ação contra sua tia Leonor Carolina Allen, viúva de João Allen, e seus primos. A ideia era provar que não estavam a cumprir os termos da concordata, retirar-lhes o poder de irem liquidando as suas dívidas e tomar em dação de pagamento toda a fortuna penhorada. Os fundamentos eram, basicamente:
a) Que Leonor Carolina era “meeira” do casal, pelo que os seus bens pessoais também deviam ser arrolados – o que não era verdade. Leonor Carolina tinha um avultado dote “blindado”, em que nem credores nem fisco poderiam tocar.
(1.900 contos de reis).
b) Retirar à viúva e filhos de João Allen o direito de administrar os seus bens hipotecados, liquidando-os de imediato, “tanto mais que o falecido pai já em vida faltara ao cumprimento da concordata” e que, segundo a pretensão, a concordata era um direito pessoal e restrito à sua vida.
c) Que, portanto, a disposição dos bens passaria para as mãos, dele autor, José Allen
*Extrato do catálogo João Allen – colecionar o mundo, pág. 50
João Allen, o fundador do Museu Municipal, era tio (e sócio) do infeliz José Allen, que perdeu a vida com duas innocentes filhas, no memorando naufrágio do vapor Porto, em 29 de março de 1852—precisamente no dia em que por occasião da segunda invasão franceza (em 1809), tantas mil pessoas pereceram nas mesmas aguas do Douro, quando em tropel fugiam pela Ponte de Barcas, para o Sul do paiz.
(Leal, 1875, p. 256)